DISCURSO DO ORADOR DE TURMA
(Por ocasião da solenidade de Renovação de
Formatura da turma de médicos da UFBA de 1978).
“ Eu juro, por Apolo
médico, por Esculápio, por Higéia e Panaceia, e tomo por testemunhas todos os
deuses e todas as deusas, cumprir segundo o meu poder e a minha razão, a
promessa que se segue. (assim começa o juramento de Hipócrates).
...Se eu cumprir este juramento com
fidelidade, que me seja dado gozar plenamente da vida e da minha profissão,
honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, que me
suceda o contrário." ( assim termina).
Me permitam dizer mais
duas palavrinhas sobre o mestre de Esculápio, Quíron o centauro.
Na mitologia
grega, Cronos (Saturno, para os romanos), se disfarçou assumindo a forma de
um belo cavalo para
se esconder de sua esposa, a deusa Reia, e se unir à ninfa Filira. Dessa
união nasceu o Centauro Quíron. Metade humano, metade animal. Apesar de
rejeitado pela mãe por sua estranha forma, o bebê centauro foi adotado e
educado por Apolo, deus do sol e da beleza que lhe ensinou as artes, o
conhecimento, o aperfeiçoamento do dom e da aptidão para a cura.
Quíron era sábio, ensinava a música, a
arte da guerra e da caça, a moral, a astronomia, mas sobretudo a
medicina. Foi o grande educador de heróis, entre outros, Jasão,
Hércules, Teseu, Perseu, Aquiles e Esculápio. Uma espécie de pediatra
dos filhos de deuses, semideuses e heróis em perigo por causa das traições e
vinganças entre deuses e deusas.
Quíron foi ferido
acidentalmente por seu amigo e discípulo Hércules, com uma flecha envenenada
com o sangue da Hydra (um dos 12 Trabalhos de Hércules). O curador ferido como
ficou também conhecido, não podia curar a si
próprio, nem morrer. A imortalidade, também imortalizava a dor, o sofrimento.
Ele pediu para ser aceito no mundo dos mortos por Hefestos. Terminou sendo
eternizado pelos deuses na constelação de sagitário. Essa busca de inspiração e do sagrado, do
dom, da inspiração, está presente desde a medicina grega mitológica até a
ciência moderna laica e tecnológica. Assim nos aproximamos um pouco da arte e
da cultura. A medicina como uma profissão culta e humanista.
Mas vamos tentar numa
aterrisagem suave, voltar para a Bahia. Nós que nos amávamos tanto, temos tanta história que daria
para várias trilhas sonoras. Felicidade, passei no vestibular...
E aí começaram os
melhores anos de nossas vidas. Aquele aqui e agora para estudar medicina e
viver sob o sol de Salvador fazendo parte deste povo baiano, sagrado e profano,
no carnaval, nas serenatas na lua cheia na lagoa do Abaeté e tudo a que
tínhamos direito. Eu não tenho dúvida. Foram os melhores anos de nossas vidas.
Por sermos jovens e compartilhar esse tempo vivendo intensamente, estamos aqui
hoje celebrando. Alguns já se foram. Não posso deixar de citar a nossa colega
Virgínia Gumes Andrade, com quem fui casado e que é mãe da nossa filha Isadora,
que por sua vez é neta dos professores Zilton e Sônia Andrade, verdadeiras
lendas vivas da medicina e da ciência. Isadora não pôde vir, mas está
representada pelo irmão, Rafael Chaves Galvão, jovem advogado, meu filho e da
colega Maria Engrácia. Também está presente Rosangela da Luz Matos, minha
partner.
Fomos privilegiados com
grandes mestres. Muitos já partiram. Heonir Rocha, Rodolfo Teixeira, Guilherme
Lyra, Rebouças para representar os maiorais. Continuam vivos na
nossa memória e nas suas contribuições à medicina e à ciência, atuais,
presentes nas publicações e compêndios médicos que ainda são utilizados e nesse
sentido, são também imortais. A todos, mestres e colegas
que conviveram, compartilharam tudo e continuam nos nossos corações, nossa
sincera homenagem.
...Nós que nos amávamos
tanto, temos tanta história que daria para fazer várias trilhas sonoras.
“40 anos e nenhum
problema resolvido, sequer colocado” ... Não resisto ao verso de Drummond.
A nossa turma, há
40 e poucos anos atrás, fez uma greve em plena ditadura militar, uma greve
histórica, a primeira em uma instituição de ensino superior, depois do AI 5. Fizemos
a nossa greve. Saímos às ruas, pedimos apoio, fizemos manifestações, abaixo
assinado nos cursinhos de pré vestibular, na Barroquinha, na Av. Sete.
Recebemos apoio de entidades, do cardeal Brandão Vilela, do abade do mosteiro
de S. Bento, Dom Timóteo Amoroso Anastácio, personalidades,
entidades. A imprensa rompendo a censura e a auto-censura pôde finalmente
noticiar. Documentar.
Veio um figurão
de Brasília, do ministério da educação para negociar o fim da greve,
que chamávamos de paralização ou assembleia geral permanente, para não ferir
susceptibilidades e atrair repressão violenta.
A nossa greve virou
tese acadêmica. Teria sido um impulso para o movimento estudantil no estado e
mesmo no país. Explodiu uma greve geral da UFBA naquele mesmo ano.
Vivenciamos depois a
invasão policial do Hospital das Clínicas, nosso território sagrado,
com bombas de gás lacrimogêneo penetrando no interior das enfermarias. Dois
colegas foram presos pela PF por dar carona a lideranças para furar o cerco ao
hospital. Eu e Virgínia éramos os caronas. Sobrou para Rui Marcelo (que já
descansa na paz de Deus) e para o colega Reinaldo, aqui presente, que tiveram
de passar uma noite na PF –Polícia Federal.
Foi um aprendizado do exercício da
cidadania, de luta por condições de ensino e por democracia em regime
ditatorial. Uma bela combinação de resistência pacífica com desobediência
civil no melhor estilo praticado por Gandhi. Valeu a pena? Tudo vale a pena
quando a alma não é pequena como dizia o poeta.
Sempre me vem a memória
um fato pitoresco, no final da assembleia que decidiu pela greve. Foi
perguntado democraticamente sobre quem não aderia. E um único colega ficou de
pé e disse em alto e bom som. EU NÃO ADIRO!
A frase ficou ecoando e
até hoje tenho vontade de dizer o mesmo sobre uma série de coisas às quais eu
não adiro. E vou aproveitar este momento para dizer ao menos uma delas para
finalizar. Li há pouco uma frase que dizia: -Eu já precisei de médico,
encanador, eletricista, agricultor, etc., mas nunca precisei de um artista.
Seguiam-se aplausos entusiasmados e ataques violentos a muitos artistas
brasileiros e baianos por causa de suas preferências políticas. Aplausos
a um país sem artistas. Sem ter a quem aplaudir. Eu definitivamente não adiro a
este tipo de coisa.
Digo mais, não estou
preocupado com os artistas, eles já fazem parte da história das artes e da cultura.
Já são imortais.
Me preocupa muito mais
a gente que pode estar se tornando uma gente bárbara, insensível, em guerra
contra nós próprios e com os nossos artistas. Assim como eu não sou
obrigado a seguir as preferências políticas dos artistas, eles também não são
obrigados a seguir as minhas.
Atacar os nossos
artistas é como cuspir para cima. Se muitos continuarem cuspindo para cima,
vamos todos levar uma grande cusparada. É só isso, por enquanto.
Muito obrigado a todos
e aos colegas que me escolheram para orador de turma na solenidade de Renovação
de Formatura nos 40 anos dos médicos de 1978 da UFBA. Boa noite!