quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

SONATA PATÉTICA

 Sonata Patética 

Cassiano Ricardo

Como na música de Gil "Lá em Londres

querendo ouvir Cely Campelo prá não cair naquela ausência,  naquela falta..."


Em data natalicia me vi querendo fazer releituras de Cassiano Ricardo até culminar a busca nesse imenso poema: (difícil de achar em velhos livros  quase esquecidos mas encontrei  e ficou tudo bem).

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SONATA PATÉTICA 

Cassiano Ricardo


O meu rosto do retrato,

 jovem, e por minha mãe 

colocado na parede 

deste quarto, onde hoje moro,

fica defronte ao do espelho.


O do espelho nem parece 

ser o eu mesmo do retrato.

 De tão triste: Diferente. 

Parece mais um parente

 corroído por muitos danos 

mas ainda vivo, chegado 

de uma viagem de trinta anos.


Como pude morrer tanto, 

mudar de cor, e de fato,

 sem um grito, sem um ai

entre um espelho e um retrato? 

Só perguntando a meu pai.


Na hora, não senti nada... 

Agora não me conformo 

com a rude metamorfose 

que me deixou sua marca. 

Que me saqueou de mansinho,

me pôs nu diante do espelho 

piando como um passarinho. 

Como se a vida não fosse

já tão magra, já tão parca. 

Que fada exigente, má, 

pediu meu rosto ao tetrarca?


Só mesmo a gente se rindo.


Rio-me desapontado, 

por ver que já não adianta

 chorar, se tudo está findo.


E vou do espelho ao retrato

 (de cabelo repartido) 

e do retrato ao espelho 

(caco de espelho partido)

 com qual dos dois me assemelho? 

Lá fora dançam as árvores 

no crepúsculo vermelho...


Tempo abutre pernilongo 

ficou tocando violino 

enquanto chupa meu sangue 

em noite de serenata.


Bebeu água nos meus olhos. 

Me depenou. Arrancou-me 

penas do corpo e das asas. 

E voa com minhas penas. 

E leva, agora, o meu rosto 

para o lado do sol-posto.


Em cada passo que dou, 

hoje, entre o espelho e o retrato,

 já eu próprio me divido. 

Enquanto um pé é futuro 

o outro já foi pro olvido. 

E, sem sentir coisa alguma 

(pois raramente me ajoelho) 

vou andando, dividido, 

meio anjo, meio bicho, 

entre os dois: retrato e espelho.


Vou andando, repartido,

 entre o poeta do retrato

 e o filósofo do espelho. 

Entre o meu rosto, já ausente, 

e o eu,  de corpo presente.


Na hora não senti nada. 

Não é nada... não é nada... 

Depois é que sinto o estrago. 

O tempo passou, num trago, 

me depenou e, com as minhas 

penas fez as suas asas. 

Quando ouvi seu passo duro

 pois caminho pro futuro 

com o calcanhar para o oeste

 já ele ia pro sol-posto 

onde enterrará o meu rosto.


Eu vejo todo no espelho.

Chovem brasas! chovem brasa

Só mesmo a gente se rindo 

Sobre o espetáculo findo.

Lá fora as árvores dançam 

no crepúsculo vermelho. 


"O que me abisma, entretanto, 

nesta grande tarde rubra, 

já não é o eu haver sido 

Apedrejado em silêncio 

por um secreto inimigo 

que deve morar comigo 

sem que eu, jamais, o descubra. 

Já não é a bofetada

 que o tempo, em câmara lenta, 

me aplicou, não senti nada. 

Já não é o terremoto 

em meu chão de carne e osso, 

sem registro no sismógrafo, 

que passou, não senti nada. 

O que me abisma, inda agora,

 não é a distância que vai 

entre o meu rosto do espelho 

e o meu rosto do retrato. 

E o tempo, o tempo que mói, 

no céu, as próprias estrelas, 

como uma farinha de ouro; 

é o tempo, o tempo que rói 

até o rosto dos retratos; 

é o tempo que nos destrói 

tudo, tudo-tudo-tudo, 

nem de leve me haver doído. 

Isto agora é que me dói. 

Este, o insulto que revido. 

Como pude morrer tanto, e tanto, 

sem me haver doído?"


(S6 mesmo achando engraçado 

o que já é triste, bem triste.)

 E vou do espelho ao retrato 

e do retrato ao espelho:

 "Como é que uma bofetada 

não me doeu, cruel, imensa, 

no momento de ter doido?

 pra que eu tivesse reagido

 na hora, à altura da ofensa?

 Pois não senti a bofetada.... 

Isto agora é que me dói."


"Que anestésico celeste

 terá usado o vil abutre 

que subverteu, em trinta anos,

 toda a minha geografia? 

comeu rosas, deixou cravos 

no chão de tanto desgosto 

que hoje é o mapa do meu rosto?

 e tudo tão sem rumor,

 tudo tão sem me haver doído que não lhe senti a bicada? 

Este, o ponto que revido. 

Isto agora é que me dói." 

"Como hoje curar feridas 

assim, retroativamente, 

na máquina de costura 

se as pedras, que a mão oculta 

me arremessou, foram mudas?

 se não lhe senti a pedrada?

 Isto agora é que me dói.

" E vou do espelho ao retrato 

e do retrato ao espelho: 

"Quero encontrar o agressor, 

mas como? ele está escondido 

no curto espaço que vai 

entre um espelho e um retrato. 

A quem, pois, pedir conselho? 

Ele ficou dividido entre os dois:

 retrato e espelho. 

Quero caçá-lo, não posso.

 Sua boca é de um minuto 

escondido sob as asas 

mas ele tem cara grande

 não cabe em fotografia.

 Tem dois rostos, do tamanho, 

um, da noite, outro do dia."

 (E vou do espelho ao retrato 

e do retrato ao espelho.

 "Uma coisinha de nada 

dos solavancos em meio 

arranhadura no dedo

 picada de azul piranha 

mordida de pernilongo 

queda durante o passeio 

feridazinha singela 

no ato de abrir a janela, 

já me obriga a fazer feio. 

Como, pois, poderei eu 

aceitar (eu, o agredido)

 uma dor que não me doeu

 no momento de ter doído?


Não é justo, não é honesto. 

Contra isto é que protesto.


Tudo perdido, inclusive 

minha vocação pra herói: 

Isto agora é que mais dói!"


E rio-me sem querer.


Pois não me resta outra coisa 

(por não ter sentido nada)

 à hora do necrológio, 

senão me rir do que é triste 

e... consultar o relógio.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Poema de Heine MORFINA

 Poema de Heine

MORFINA
É grande a semelhança desses dois
jovens e belos vultos, muito embora
um pareça mais pálido e severo
ou, posso até dizer, bem mais distinto
do que o outro, o que, terno, me abraçava.
Havia em seu sorriso tanto afeto,
carinho e, nos seus olhos,tanta paz!
Ornada de papoulas, sua fronte
tocava a minha, às vezes – e seu raro
odor me dissipava a dor do espírito.
Tal alívio, porém , não dura. Eu só
hei de curar-me inteiramente quando
o irmão severo e pálido abaixar
a sua tocha. – O sono é bom; o sono
eterno, ainda melhor; mas certamente
o ideal seria nunca ter nascido.
..................
*Heinrich Heine
Foi um defensor apaixonado dos ideais da Revolução Francesa, crítico implacável da hipocrisia moral e inimigo feroz do nacionalismo germânico, cujos frutos mais terríveis ele profetizou com um século de antecedência: “um drama há de ser encenado na Alemanha que fará a Revolução Francesa parecer um idílio inofensivo”. Em 1848, a doença – que julgava ser a sífilis – o fez passar os oito anos seguintes entrevado numa “cripta de colchões”, trabalhando incansavelmente, sob doses cada vez mais altas de morfina. Ainda arranjou forças, nos últimos meses de vida, para um affaire platônico com uma jovem e misteriosa visitante que ele apelidou de Mouche (Mosca), e a quem endereçou seus últimos poemas. Faleceu em 1856, sendo sepultado no cemitério de Montmartre.
(Templo Cultural Delphos).


LILITH A LUA NEGRA

 LILITH A LUA NEGRA, de Roberto Sicuteri que li há muito tempo e hoje, dia internacional da mulher me volta à memória. Me impressionou desde o prefácio.Alguns fragmentos:

" Ao leitor
Neste livro é contada a história de Lilith, a primeira companheira bíblica de Adão, cujos traços a consciência coletiva apagou, distraidamente, no tempo incomensurável em que se representa a história do homem. …
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Paulo Raymundo Santana Santos
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